Os números dão a dimensão do problema. Nos últimos sete anos, mais de 14 mil pessoas entraram no Hospital João XXIII (Complexo de Urgência e Emergência da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais - Fhemig), em razão de queimaduras graves. Uma média de cinco atendimentos por dia, 158 por mês e 1.900 por ano. Apenas nos cinco primeiros meses deste ano, 724 pacientes foram assistidos pelos profissionais dessa unidade.
As estatísticas do maior pronto-socorro do estado, e um dos maiores do Brasil, refletem os números divulgados pelo Ministério da Saúde, no início deste ano, e evidenciam a complexidade da questão que abrange um grande número de países no mundo.
Em seu Centro de Tratamento de Queimados (CTQ) Ivo Pitanguy – localizado no 8º e 9º andares do hospital, que recebe os casos de alta complexidade, estiveram internados, somente no ano passado, 412 pacientes, dos quais 30 em razão de queimaduras elétricas. O CTQ conta com 35 leitos, sendo 24 de enfermarias, nove de UTI’s adultos e dois de UTI’s pediátricas.
Com o slogan “Não se choque, eletricidade queima”, a campanha “Junho Laranja” deste ano, promovida pela Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ), busca conscientizar as pessoas para os riscos representados pela eletricidade, a fim de evitar que se envolvam em acidentes desse tipo, sem esquecer, porém, das demais causas, como as térmicas.
Mais letais
Embora proporcionalmente menor em número de casos, quando comparada às demais razões de entrada em unidades hospitalares, as queimaduras elétricas respondem, sozinhas, por quase metade de todos os óbitos resultantes de acidentes relacionados.
Segundo dados do boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, no período de 2015 a 2020, foram registradas 19.772 mortes por queimaduras no Brasil. Dessas, 53,3% (10.545) devido a queimaduras térmicas; 46,1% (9.117) a queimaduras elétricas; e 0,6% (110) a outros tipos de queimaduras, como agentes químicos, geladura e radiação. Dos óbitos por queimaduras elétricas descritos no documento, 70,1% (6.429) ocorreram no local do acidente.
A cirurgiã do CTQ do HJXXIII e vice-presidente da SBQ, Kelly Araújo, salienta que as queimaduras elétricas são as mais letais e mutilantes. “É uma alta carga que vem queimando tudo. A pele é o último órgão a queimar. A carga elétrica passa pelos músculos, nervos, coração e outros órgãos e tecidos, por isso é tão letal. Além disso, esse tipo de queimadura causa mais sequelas: mutilações, amputações de braços e pernas, cegueira, entre outras consequências. No 9º andar do HJXXIII, os choques elétricos, geralmente, são o terceiro motivo de entrada. Nas enfermarias do 8º andar, são o quarto”, afirma.
Agentes térmicos
As estatísticas do HJXXIII mostram que, entre 2016 e 2022, foram atendidos, apenas na unidade, 11.405 casos de queimaduras térmicas (distribuídos por ocorrências envolvendo líquido livre, fogo e contato com objeto quente – mais prevalentes), numa média de mais de 1.600 casos anuais. Os agentes térmicos são as principais causas de queimaduras que ocorrem nos ambientes domiciliar e peridomiciliar (localizado em até 50 metros no entorno da casa).
No mesmo período, levando-se em conta as queimaduras térmicas, os casos envolvendo líquidos livres responderam por 7.530 atendimentos, o que representa 66,02% do total desses três agravos. “A queimadura por líquido livre (inflamáveis ou ferventes) é muito comum no ambiente doméstico. Embora os acidentes desse tipo não sejam os mais graves, eles são os mais comuns nas enfermarias e nos ambulatórios. Portanto, cuidados simples adotados pelas pessoas em seu cotidiano poderiam evitar casos dessa natureza”, orienta Kelly.
Ainda segundo os registros do HJXXIII, as queimaduras por contato com objeto quente são prevalentes em meninos na faixa etária dos 0 a 5 anos de idade, enquanto as relacionadas ao fogo ocorrem com mais frequência em homens na faixa etária de 41 a 50 anos; as por líquido livre são mais comuns em mulheres com idades entre 20 e 30 anos.
Recuperação lenta
Embora fora da faixa de prevalência das queimaduras por contato com objeto quente, o motorista Vinicius Batista Matias Moreira, de 24 anos, que mora em Amarantina – distrito de Ouro Preto, guarda no próprio corpo as lembranças do contato com o asfalto quente.
No dia 5 de fevereiro deste ano, num domingo à tarde quando voltava para casa, depois de aproveitar o dia em uma cachoeira da região, ao fazer uma curva, caiu da motocicleta que pilotava e teve as costas e a cabeça arrastadas no asfalto quente, resultando em queimaduras de 3º grau. Ele foi transferido para o HJXXIII e ficou internado no CTQ por 49 dias.
“Ainda estou em recuperação. Queimadura demora muito tempo para melhorar. Agora estou usando uma malha para a pele não ficar com marcas. A cicatrização incomoda muito, principalmente no local do enxerto de pele. Às vezes dói e coça bastante, mas não atrapalha o meu dia a dia”, conta Vinícius.
Quanto à prevenção, ele afirma que é importante que tanto as crianças quanto os adultos sejam orientados para evitarem acidentes com queimaduras. “Enquanto estive no hospital, vi muitos casos de queimaduras por álcool. Todos diziam que tudo aconteceu em questão de segundos e que não sabiam que era tão perigoso assim”, lembra.
“O atendimento que tive foi excelente, sou muito grato a toda a equipe, que me tratou muito bem todos os dias. Me sentia em casa. Eles são muitos especializados, tomam todos os cuidados para não nos causar dor e nos recuperarmos logo”, revela o motorista.
Simples e fundamentais
São várias as situações do dia a dia que contribuem, direta ou indiretamente, para que ocorram acidentes envolvendo queimaduras, principalmente dentro de casa. Kelly cita uma série de cuidados simples, porém fundamentais, capazes de evitar queimaduras e que devem ser incorporados à rotina das famílias.
Se você tem criança pequena, não use forro na mesa. Ela pode puxá-lo e o objeto quente cair sobre ela. Também não coma alimentos quentes com o bebê no colo. Somente o pegue no colo se não estiver com algo quente nas mãos, seja sopa, café ou qualquer outra coisa aquecida. Jamais cozinhe com o bebê no colo. Retire a criança da cozinha quando estiver usando o forno. Mantenha as panelas com líquidos quentes na parte de trás do fogão, com o cabo virado para dentro.
Deixe o ferro esfriar longe do alcance da criança e utilize algum tipo de proteção na base. Ao preparar o banho do bebê, primeiro coloque água fria e depois acrescente, aos poucos, água quente. Meça a temperatura da água com o dorso da mão (parte de trás da mão) antes de colocar o bebê na banheira.
Em relação às queimaduras elétricas, as recomendações incluem evitar as gambiarras – soluções improvisadas. Evite usar vários benjamins ou muitas tomadas no mesmo benjamim. Em vez disso, use um filtro de linha. Evite realizar gatos (ligação elétrica clandestina), eles representam risco para todas as pessoas da casa. Use protetores de borracha ou coloque os próprios móveis na frente das tomadas para que as crianças não introduzam o dedo ou algum objeto. Não use o celular quando o carregador estiver ligado na tomada – os casos de óbitos em razão dessa prática têm crescido nos últimos anos.
Sequelas para sempre
“A sociedade tem que ter consciência de que os riscos existem e que os acidentes não acontecem somente com os outros. Enquanto minimizarem as causas, o risco será uma constante. A queimadura sempre deixa sequelas: se não for física, vai ser emocional, porque é muita dor, muito sofrimento. Por isso, as campanhas são fundamentais. As crianças devem ser educadas para isso, assim como os pais, os trabalhadores. Todos enfim”, reitera a cirurgiã plástica e vice-presidente da SBQ.
Quanto às pessoas idosas, é fundamental avaliar se elas estão em condições de manipular certos tipos de materiais, como objetos quentes, por exemplo. As queimaduras são potencialmente mais graves em idosos e crianças. Além disso, o idoso costuma ter comorbidades que agravam o quadro.
Esses cuidados não são excessivos. Segundo o anuário estatístico de acidentes de origem elétrica 2023, ano base 2022, da Associação Brasileira de Conscientização para os Perigos da Eletricidade (Abracopel), os principais causadores de choques elétricos em casa são os eletrodomésticos ou eletroeletrônicos (21,5%), seguidos dos fios partidos ou sem isolação (16,8%), das extensões, benjamins e tomadas (14,1%) e da manutenção caseira – telhado, antena etc. (10,7%). Nesse contexto, Minas Gerais ocupa o quinto lugar no ranking nacional de mortes por choque elétrico. No ano passado, no estado, foram 28 óbitos (4,7% do total de casos).
Questão de segundos
O eletricista Jonathan Faria, de 40 anos, jamais se esquecerá do dia 1º de maio de 2020. Ao realizar a pintura da fachada de sua casa em Sabará, o balde de tinta à base de água que usava caiu sobre a rede elétrica em frente à sua residência. Em questão de segundos, ele sofreu uma descarga elétrica, seguida de uma explosão de 13.800 volts. No momento do acidente, teve uma parada cardíaca e ficou em coma durante boa parte de sua internação no CTQ do HJXXIII. Após mais de três anos do acidente, Jonathan ainda está em recuperação e é atendido no ambulatório de retorno de queimados do hospital.
"Está sendo um processo lento, pois a eletricidade afetou os nervos e a minha visão. Tenho cicatrizes em 42% do meu corpo, algumas hipertróficas (que podem regredir com o tempo), outras que evoluíram para queloide (cicatriz)", lamenta o eletricista.
Casado e pai de dois filhos, Jonathan conta que as cicatrizes não o incomodam, mas percebe que causam desconforto nas pessoas ao seu redor, inclusive familiares. “As sequelas me atrapalham, pois o braço esquerdo não tem mobilidade total e meu equilíbrio ainda não está totalmente recuperado. No caso das queimaduras com a rede elétrica, quero que todos os meus colegas de trabalho e profissionais da área se conscientizem e usem os equipamentos de proteção individual (EPI'S), pois amenizaria muito o meu acidente se eu os estivesse usando", reflete.
Conscientização
Assim como Vinícius, depois de sua experiência traumática, Jonathan se conscientizou sobre a importância da prevenção de acidentes com queimaduras.
“Meus filhos, um rapaz de 17 anos e uma mocinha de 4 anos, ficaram horrorizados com o meu acidente. Seria fundamental que as escolas abordassem o perigo das queimaduras em sala de aula. Hoje oriento meus filhos, como prova viva, de que acidentes acontecem mesmo dentro de casa e que podem ser evitados ou, pelo menos, amenizados. O hospital João XXIII é a minha segunda casa. Todos são muito atenciosos e de uma generosidade grandiosa. Agradeço a eles por salvar, zelar e cuidar da minha vida. Não estaria aqui se não fosse pelo carinho da equipe do hospital”, pontua Jonathan.
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