Em algum dia perdido na infinitude do tempo, na sala de audiência do Fórum da Comarca de Divinópolis-MG, após exaustiva audiência em processo falimentar que acabei de presidir, na qualidade de juiz, sou surpreendido pela Sra. Escrivã, que me comunica que uma pessoa se identificando por Sandro, declarou ser meu amigo de infância e gostaria de me ver.

Para refrescar minha memória, mandou-me dizer que Selmo era nosso amigo em comum e que quando criança, eu tinha um cachorro pastor alemão, que ele, Sandro, me ajudou a treinar.

Não me recordando exatamente da pessoa, autorizei sua entrada. Quando Sandro entrou no gabinete e fixei-lhe o olhar, a lembrança viajou ao passado e enxerguei um menino de treze anos de idade, de camisa branca e bermuda clara, cabelos loiros e um pouco hiperativo.

Como num passe de mágica, voltei no tempo quarenta anos atrás. Vi a imagem de Sandro exatamente onde brincávamos com mais frequência, num monte  de areia atrás da cadeia pública, na cidade de Arcos, lá pelos idos de 1980, fazendo saltos mortais naquelas areias, desafiando a lei da gravidade, e agora sei, também do tempo, pois a lembrança ressuscitou a memória.

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Quarenta anos não são dias, semanas ou meses. São anos e mais anos. São décadas. Tempo suficiente para o tempo castigar nossos corpos de meninos, colocando-nos rugas, cabelos brancos, um ar mais cansado, mais vivido. Tempo suficiente para se fazer nascer, viver e morrer, pessoas e histórias.

Mas...., por que após quarenta anos Sandro veio me procurar, lembrando-me que tocávamos na banda da cidade, juntamente com outros colegas, como o Serginho da Transcálcio, André do Zé Rocha, Erivelto, Flávio (Pavão) e Carlos (Caim), Cléber, Carlinhos e tantos outros. O maestro da Banda, Sr. Benedictus,  ensinava as crianças da cidade não apenas a tocarem instrumentos numa banda, mas a serem cidadãos de bem, afastando-as do mal caminho e colocando-as presentes em vários eventos cívicos, não apenas na cidade de Arcos, mas em vários povoados e municípios vizinhos, Lagoa da Prata, Iguatama, Bambuí, Calciolância, Japaraíba, etc. Inclusive, a saudosa Banda Nossa Senhora chegou a extrapolar os limites territoriais das Minas Gerais, indo tocar na cidade de São Paulo, na diocese do Padre Luciano, tio do amigo e colega de Banda André.

Lembro-me que tocar na banda era muito honroso. Os nossos pais se orgulhavam dos filhos instrumentistas. Isto sem falar no programa que era transmitido na Câmara Municipal da Cidade de Arcos, cujo apresentador era o radialista Jaime. As meninas da cidade, enamorando os meninos da banda, se contentavam apenas em vê-los tocar de longe, e dificilmente algum menino criava coragem para se aproximar. Naquela época para um menino chegar perto de uma menina para paquerar, era quase um ritual. Demorava-se vários dias.

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Atrevo-me a dizer que alguns meninos, inclusive eu, em várias oportunidades, éramos vencidos pela timidez. Admirávamos as meninas em silêncio. Em alguns casos creio que essas admirações e encantamentos nascidas de tímidas trocas de olhares, secretas permaneceram e secretas se perderam no tempo. Algumas coisas eram muito demoradas naquela época. Mas para que pressa. Éramos jovens e tínhamos todo o tempo do mundo. Não nos dávamos conta de que um dia, até o tudo acaba. Enquanto algumas coisas eram bem mais difíceis naquela época, em meio as facilidades que temos hoje; em compensação outras coisas eram bem mais fáceis, em meio a complexidade que a vida se tornou nos dias de hoje.

Mas todos, simplesmente todos paravam; a cidade parava, para ver a banda passar e tocar. Que saudades!!!!

Próximo ao loteamento da Dona Hilda tinha uns dois ou três campinhos de futebol, em que diariamente eram disputadas várias peladas de futebol. Valtinho, Fernando, Saulo, Jaques e Beto do Zé Rocha, Euler, Luiz Cláudio e Paulinho do Dr. Leopoldo, Magno, Giovany, Anderson, Carlinhos (Caim), Márcio Faria e tantos outros ali se reuniam diariamente para as partidas de futebol.

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Também jogávamos bola no Campo Ipiranga e em frente a escola Yolanda Jovino Vaz , no caramanchão que ali existia.

Quando a rua Jarbas Ferreira Pires estava um pouco silenciosa, descia uma turma de meninos em suas bicicletas, com arcos e flechas nas mãos, com os guidãos livres, atirando flechas e lanças rudimentarmente fabricada pelos próprios, nos pobres cachorros que andavam pelas ruas. Que me perdoem os atuais e dedicados defensores e protetores de animais, mais confesso tal atitude ante a ocorrência da prescrição de tais crimes.

Já fazem mais de quarenta anos, e o estado de inimputabilidade penal dos autores dos fatos, menores de idade à época, totalmente incitados pelos filmes de faroestes daquele tempo, fazem incidir circunstâncias e atenuantes que nos absolvem destas travessuras. Naquela situação, em verdade, não éramos garotos andando de bicicletas e jogando flechas em cachorros, mas verdadeiros índios em nossos impetuosos cavalos, em busca da nossa caça.

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Como participante do referido fato, entendo que imputar a outrem a autoria intelectual de tais condutas, não me isentaria da responsabilidade pelo evento ou atenuaria minha culpa, mas para ser fiel ao ocorrido, esta tribo de bicicleteiros tinha como chefe e idealizador o André, filho do Zé Rocha. Naquela época, se qualquer senhora tivesse em sua casa algum animal que lhe incomodasse, tais como gatos, ratos, cobras, corujas, sapos, etc, qualquer um,  não seria outra a pessoa a ser indicada para o trabalho de remoção deste animal, senão o André. “Chamem o André, que ele resolve!!”.

Prontamente atendendo a qualquer chamado, André largava qualquer coisa que estivesse fazendo para se aventurar naquele seu ofício preferido. Sempre contava com escudeiros fiéis para o empreito, eu, Leonardo, Carlinhos, meus irmãos César e Valério ( o Leleu).

André também era o nosso guia para passeios na Torre. Levávamos Ki-suco e pão com salame, para merendarmos na Torre. Íamos até o local em penosa caminhada nas manhãs de domingo ou sábado. Fazíamos um lanche. Brincávamos de polícia ladrão, escalávamos alguns obstáculos de arbustos e árvores e voltávamos, sempre machucados, com joelhos ralados, roupas rasgadas, etc.

A respeito deste meu amigo André, talvez em alguns casos ele possa ter até me trazido alguns maus exemplos, mas uma das maiores lições da minha vida foi ver este menino, na época com doze ou treze anos de idade, tocar a marcha fúnebre no enterro de sua própria mãe, Dona Lúcia, professora primária, que prematuramente faleceu em face de um ataque cardíaco. 

Enquanto os alunos da Escola Yolanda Jovino Vaz, onde Dona Lúcia lecionava, iam jogando pétalas de rosas pelo chão, por onde o féretro passaria, logo após o caixão, seu filho vinha derramando lágrimas, com a clarineta nos lábios, sem desafinar em uma só nota.

A força da dignidade daquele momento ecoava longe e o som triste da clarineta a lamentar a perda daquela bondosa alma, parecia dar mais força aquele filho que, naquele momento prestava a última homenagem que lhe era possível prestar à sua mãe.

Rouba bandeira, pique pega, polícia ladrão, brincadeiras que eram frequentemente utilizadas na Rua Jarbas Ferreira Pires todas as noites, até que um a um, ali pelas 21h30min, 22horas, eram chamados pelos pais, para adentrarem ao seus lares. Já era hora daqueles “pestinhas” repousarem em seus leitos e recarregarem a energia para o inédito e maravilhoso dia seguinte. Também era muito comum entre nós, sendo uma das nossas ocupações preferidas, contarmos casos de “assombração” e “vampiros” à noite, à luz do luar. Masoquistas, tínhamos medo, mas não abríamos mão de espalhar o medo que sentíamos com os demais, contando esses tipos de “casos”.

Os casos e acasos às vezes eram interrompidos quando outra brincadeira preferida  por nós era exercitada. Mexermos com os considerados por nós, crianças, como os “doidos” da cidade: “Tião Pega-Frango”, “Paguega”, “Maria Doida”, “Tidi Bota Ovo”. Tínhamos medo, mas novamente gostávamos de desafiar o medo, mexendo com estas pessoas, que corriam atrás da gente e muitas vezes quase nos pegavam. Me vem agora o pensamento do que ocorreria se fossemos pegos por eles.

Sei que na época, o medo era terrível, de sermos pegos e nos tornamos “frangos” ou virarmos “sabonetes”. Mas graças a Deus, pelo que sei, nenhum dos meus amigos ou conhecidos foram pegos e viraram sabonetes. Éramos muito espertos. Nada podia nos deter. Os perigos eram abstratos. Não encontrávamos perigo concreto em nada. A nossa realidade se misturava com os nossos sonhos e éramos sempre vencedores, verdadeiros heróis.

À memória das pessoas supramencionadas, minhas desculpas pelo que fazíamos, mas também meu agradecimento por terem feito parte da nossa infância, da nossa história, das nossas aventuras.

Sei que hoje, mas que vencedores, nós vivemos uma infância única. A nossa geração não se contentou apenas em existir, nós efetivamente vivemos todos os momentos, todos os instantes, todas as aventuras de um mundo mágico, puro, ingênuo, heróico, mas sobretudo real. Fomos protagonistas das nossas próprias aventuras. Interpretamos os heróis que víamos na televisão, no cinema, e nos livros. Fomos todos naquela época forjados para sermos heróis, lutadores e sobretudo vencedores.

Por sermos tão especiais passam-se os anos, mas enquanto vida e lembrança tivermos, jamais nos esqueceremos da infância tão bem vivida e dos heróis que existem, não apenas dentro de nós, mas na amizade que restou no coração de cada um dos amigos e colegas que tivemos na infância.

Alguns podem chamar a isto de nostalgia. Eu chamo de lembrança, lembrança de um tempo em que a vida ali estava para ser vivida e compartilhada. Nós tivemos infância na querida cidade de Arcos, no final da década de 70, início dos anos 80. Vivemos a vida como se deve viver, como se não houvesse amanhã. Compartilhamos valores que hoje são raros, como amizade, companheirismo, lealdade, solidariedade, honestidade e sobretudo alegria. Já dizia o filósofo que um homem sem história é um homem sem passado. A nossa geração tem história para contar porque teve um passado para recordar.

A todos vocês meus amigos e colegas de infância, alguns os quais eu mencionei o nome; outros que lembrei, mas não mencionei; e outros cujo passar do tempo me levou ao esquecimento; meu muito obrigado por terem compartilhado comigo este momento efêmero da infinitude do tempo, que se tornou inesquecível para nós, que foi a nossa infância na querida cidade de Arcos.